terça-feira, 12 de maio de 2015

O OLHO QUE TUDO VÊ



A internet é um ambiente de infinitas possibilidades de comunicação e de expressão. Mas, como quase todo espaço,também comporta sujeitos mal-intencionados e interesses econômicos. Em um contexto em que o Brasil ainda está construindo regulações, a privacidade e a liberdade do usuário na rede entram em xeque

POR: LARISSA MAINE / 05/11/2014
No dia 31 de agosto, o sistema de arquivamento de dados em nuvem, mais conhecido como iCloud, da atriz americana Jennifer Lawrence, foi invadido por um hacker. Na invasão, fotos íntimas que eram destinadas exclusivamente ao namorado da vítima foram divulgadas na internet. O caso de Jennifer Lawrence foi o mais repercutido na mídia, mas, na mesma invasão, arquivos de várias famosas também foram roubados.

Em 2012, a atriz brasileira Carolina Dieckmann enfrentou uma situação similar. Os autores do crime passaram a chantageá-la exigindo 10 mil reais em troca do sigilo de 36 fotos íntimas, as quais também seriam destinadas exclusivamente ao marido. Mas a atriz deu um passo corajoso e não só não aceitou a chantagem, como deu início a um processo na justiça para identificar e punir os culpados. Exatos dez dias depois, os três autores do crime foram descobertos.

O caso de Carolina impulsionou a edição da Lei 12.737/2012 para a inclusão de novos crimes virtuais no Código Penal. Apelidada de “Lei Carolina Dieckmann”, ela tipifica como infrações uma série de condutas no ambiente online, principalmente em relação à invasão de computadores, além de estabelecer punições que vão do pagamento de multa a detenção de três meses a dois anos. Embora ainda sejam brandas em comparação com as consequências que um cibercrime pode trazer – como quando o réu é primário e a punição tem chance de ser convertida em pagamento de cestas básicas –, a condenação dessas práticas por lei é um passo essencial para inibi-las.

Ainda assim, é difícil reverter os estragos do alto grau de exposição da intimidade como o que essas mulheres viveram. E o tempo, na internet, é o ponto crucial. Mesmo que a justiça identifique os culpados e determine a remoção dos conteúdos, o ritmo de propagação na web é tão vertiginoso que nem sempre é possível rastrear todos os locais onde eles foram parar ou mesmo quem os replicou, conforme explica Jorge Alberto Silva Machado, sociólogo e pesquisador em Políticas Públicas de Acesso à Informação da Universidade de São Paulo. “[Na internet] é possível interceptar informações, acessar indevidamente, armazenar e cruzar dados sem que o alvo saiba. A informação é facilmente replicável e a quebra da privacidade pode estar sendo feita através de softwares instalados no computador, nos backbones [termo utilizado para identificar a rede principal pela qual trafegam os dados de todos os usuários da internet], nos servidores por onde passa a informação e até mesmo nos satélites. E o poder investigatório do Estado depende não apenas de denúncia, mas também de recursos técnicos, base legal e da existência de provas. Enfim, o direito humano à privacidade no ambiente digital é muito difícil de ser garantido, a não ser que se use uma boa criptografia.”

O maior problema da violação da privacidade é que ela acaba refletindo em outras esferas da vida do indivíduo. Não é difícil imaginar o constrangimento e a humilhação pelos quais passa uma pessoa cuja intimidade é ostensivamente exposta e divulgada sem consentimento. E não é apenas sobre sexo – ninguém gosta que revelem seus segredos, suas conversas particulares ou fotos privadas, em suma, violem sua individualidade. Em alguns casos, as consequências podem ser desastrosas, como no da piauiense Júlia Rebeca, de 17 anos. Em novembro do ano passado, a jovem cometeu suicídio após uma filmagem dela tendo relações sexuais com um rapaz e uma garota ser divulgada na internet. Momentos antes, ela deixou uma mensagem nas redes sociais se desculpando e se despedindo da mãe.

De acordo com Joana Varon Ferraz, ativista da causa de proteção à privacidade dos usuários na web e coordenadora no Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, é crucial não demonizar a internet. “O que acho importante é não descaracterizar a natureza aberta e o potencial democrático dela. Os casos de abuso têm punições legais e são até algum ponto contornáveis com ordens judiciais para remoção de conteúdos e indenizações às vítimas. A meu ver, é melhor termos a possibilidade de buscar soluções caso a caso do que, por exemplo, instituir medidas de censura prévia a plataformas ou aplicativos, que não têm amparo constitucional. Dito isso, claro que vale sempre pensar na segurança dos nossos dispositivos eletrônicos e no tipo de conteúdo que armazenamos nos mesmos, mas sem grandes paranoias”, defende.

Sem paranoias, mas certa diligência com os nossos dados pode mesmo ser útil. É possível usar programas gratuitos de criptografia para enviar e-mails ou fotos com conteúdo privado, por exemplo, os quais só poderão ser abertos pelo destinatário que tiver a “chave” de decodificação. Manter o antivírus atualizado e guardar arquivos que contenham conteúdo privado nos dispositivos eletrônicos pelo menor tempo possível também são precauções.

MULHER, CIBER OBJETO
Em casos de violação à privacidade na internet, as mulheres lideram o ranking de vítimas, por motivos que variam de interesses comerciais até vingança. Os casos nos quais o homem é vítima são raros, o que indica que a raiz do problema talvez esteja para além da regulação do ambiente virtual.

A antropóloga Larissa Pelúcio, professora da Universidade Estadual Paulista e pesquisadora da questão de gêneros e sexualidade, defende que a representação da mulher como esteio moral da casa, da família, quando não da sociedade, ainda é muito arraigada. A figura feminina precisa ser sempre vigiada, controlada, e os desejos da mulher não são considerados legítimos, sobretudo o desejo sexual, ainda interpretado como um potencial de desregramento social. Com o avanço da tecnologia, essa representação sofreu certa transposição para a esfera pública virtual, o que em parte explica a proliferação desses casos, principalmente em tempos de aquecimento do debate em torno da igualdade entre os gêneros.

“Mais do que a objetificação, a mercantilização, o transformar em coisa e mercadoria as representações em torno do feminino, existe uma ideia de que a mulher ainda precisa cumprir um papel moral dentro das regulações de família relativas à sexualidade, à criação dos filhos. Quer dizer, embora nós estejamos em um momento em que as simetrias de gênero são muito mais presentes e compõem pautas políticas, ainda temos alguns valores no plano da cultura e das representações de gênero que reproduzem ou reescrevem os valores que foram constituídos no século 19”, afirma.

Por trás dessas exposições, seja no caso das famosas ou de pessoas comuns, repousa o mesmo impulso moralizante que já se manifestava nas fofocas e nos boatos de antigamente – ou nem tão antigamente assim, já que, em cidades pequenas, as notícias da vida alheia ainda correm mais rápido que o vento. É o impulso de apontar o erro, de reprovar o que se considera errado – a diferença é que agora a fofoca é 2.0.

“Moralizar essas meninas e mulheres a partir desse tipo de exposição é algo que já se fazia, mas não com tanta repercussão, tantas imagens disponíveis. As tecnologias de difusão eram outras, mas as fofocas e os boatos eram iguais. A fofoca é um verdadeiro regulador moral; quando a gente faz uma, está dizendo que é diferente daquela pessoa que cometeu aquele ato, que somos melhores, porque temos a capacidade de fazer um julgamento daquilo, e, ao fofocar sobre o que a minha vizinha fez, estou dizendo que não a aprovo. E estou alertando, ainda que de maneira inconsciente, que, se você não se comportar direitinho, pode cair na boca do povo”, explica Larissa.

Refletir sobre essas questões se faz essencial. E, se ainda resta dúvida, fotografar-se e filmar-se não é proibido: cada um detém o direito e o livre arbítrio de fazer o que quer com o próprio corpo. Cercear uma liberdade individual para garantir outra não é o caminho. São as representações em torno dos gêneros que carecem de certa atualização; e mais, precisamos renovar o respeito pela individualidade do outro, seja no mundo físico, seja no online, sublinha Larissa. “Nós já vamos para a segunda década do século 21 e temos que repensar determinados saberes. E não falo só dos científicos: o senso comum é um saber muito potente, que tem direcionado o nosso olhar e a nossa percepção sobre as relações de gênero. Meninos e meninas não podem ser criados como se eles fossem de outro planeta, mulheres são de Vênus e homens são de Marte. Somos seres humanos que nos relacionamos intensamente e que temos que apostar muito mais nas nossas semelhanças do que nas nossas diferenças. Não há nada mais parecido com uma mulher do que um homem.”

SE VOCÊ NÃO ESTÁ PAGANDO... PROVAVELMENTE É O PRODUTO
Diariamente, eu, você e qualquer usuário que acessa a internet é alvo de outra invasão, mais velada. Grande parte de nossas vidas está concentrada em dispositivos eletrônicos onde guardamos contatos, arquivos, conversas e memórias. Por meio deles, fazemos compras e buscamos informação sobre todo tipo de assunto. Nessa migração massiva para o ambiente online, grandes corporações enxergaram um modelo de negócio muito lucrativo, baseado na observação dos hábitos de navegação dos usuários. Já parou para se perguntar por que usar o Google, o Gmail, o Facebook, assim como outros inúmeros serviços é gratuito?

“Informações pessoais e sobre o comportamento do consumidor são excelentes para estabelecer perfis de consumo. Isso proporciona vantagens competitivas para as empresas que podem coletar ou pagar por essa informação. Um indivíduo com uma renda de 3 mil reais mensais, por exemplo, irá gastar ao longo da vida cerca de 2 milhões de reais. É atrás disso que estão as empresas. Tudo o que buscou, sites que visitou, assuntos que pesquisou, suas relações sociais, tudo fica registrado. Mesmo que você tente se esconder, os sites podem identificá-lo por uma infinidade de formas: o IP [Internet Protocol], o seu perfil de navegação, a configuração do seu navegador”, explica Silva Machado.

O Google, por exemplo, gera lucro por meio da venda de espaços de anúncio nas páginas de busca para as empresas. Sempre que um usuário digita no buscador o nome de um produto ou serviço, empresas anunciantes aparecem como sugestão no início da página de resultados. Acontece que quanto mais informações o Google tem sobre o que o usuário procura na internet, visualiza e tem interesse, e quanto mais informações sobre o perfil do usuário (como faixa etária, sexo, classe econômica etc.), mais apuradas são as sugestões, e melhor é para as empresas anunciantes, que passam a identificar com precisão o seu público. Para dar nome aos bois, a prática se chama publicidade dirigida e constitui uma das principais fontes de lucro das grandes empresas na web.

“Não há nada que possamos fazer hoje, como seres humanos, para evitar que sejamos monitorados em nossas atividades online”, afirma Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e pesquisador do MIT Media Lab. “No entanto, essa batalha transfere-se então para o plano coletivo. A proteção à privacidade hoje precisa ser tratada na esfera legal. Somente a lei tem condições de criar alguma forma de proteção efetiva para o plano privado no mundo de hoje. E essa é uma luta que no Brasil, diferentemente da Europa e de outros países, está só começando.”

Aqui, o principal avanço nessa luta foi o Marco Civil da Internet, aprovado no dia 25 de março de 2014, após dois anos de discussão entre sociedade civil, governo e empresas de telecomunicações. Trata-se de uma lei cujo intuito é evitar abusos no uso dos dados pessoais dos usuários pelas grandes empresas, garantindo a privacidade na rede. “O Marco Civil avançou o debate sobre a privacidade no Brasil. Exige, por exemplo, transparência das empresas e também a necessidade de consentimento do usuário para ter seus dados coletados e processados. No entanto, ele foi só o primeiro passo. É preciso aprovar também uma lei de proteção aos dados pessoais para tratar desses temas”, defende Ronaldo.

Um dos pontos mais importantes do Marco Civil é o Artigo 7º, que garante a inviolabilidade e o sigilo das comunicações do usuário pela internet. Assim, os provedores não podem fornecer a terceiros os dados pessoais, inclusive registros de conexão e de acesso a aplicações de internet, a não ser que haja consentimento de quem os usa. Os provedores também deverão armazenar esses registros pelo prazo de seis meses, cujo sigilo só poderá ser quebrado mediante ordem judicial.

De acordo com Ronaldo, a denúncia de Edward Snowden sobre a espionagem da NSA (Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos) a figuras públicas, entre elas a presidente Dilma Rousseff, lançou luz sobre a questão, acelerando a aprovação do projeto. “O debate do caso Snowden foi muito importante. Mostrou como o governo brasileiro está despreparado para lidar com qualquer questão relativa à segurança da informação. E, no fim, ajudou a impulsionar a aprovação do Marco Civil da Internet. A questão que ficou clara é que o Brasil precisa ir além da retórica e construir bases de fato para tratar do tema da segurança da informação”, afirma.

O próximo passo é aprovar a Lei de Proteção de Dados Pessoais, cujo objetivo é evitar que informações pessoais sejam obtidas e utilizadas sem o conhecimento do titular. O projeto também assegura ao usuário a titularidade sobre suas próprias informações pessoais; assim, ele poderá requerer todas aquelas que a empresa armazenou e até o cancelamento de seu cadastro no banco de dados. Por fim, cria a categoria de dados sensíveis, como origem étnica, religião, orientação política ou sexual, cujo armazenamento será vetado.

Resta agora aquecer o debate em torno da questão, conclui Joana Varon. “Daí a importância de falar em uma aproximação multissetorial para os debates de governança da web. Nesse tipo de dinâmica, a perspectiva é que haja debate entre os diferentes interesses, da sociedade civil, da comunidade técnica, do setor privado e do Estado, para que se chegue a decisões balanceadas, idealmente respeitando direitos humanos fundamentais e preservando as características essenciais da arquitetura da rede, entre elas a sua natureza aberta, descentralizada, e a neutralidade no tráfego dos pacotes. O Brasil tem avançado nesse sentido”, afirma a ativista.

http://www.revistadacultura.com.br/revistadacultura/detalhe/14-11-05/O_olho_que_tudo_v%C3%AA.aspx.aspx; em 11/05/2015